(Este artigo só foi possível devido à fundamental colaboração de Jorge Branco com as suas preciosas memórias e arquivos)
Na sua esmagadora maioria, uma corrida tem uma distância fixa e o vencedor é o que a realizar em menor tempo. Mas também se pode dar o inverso, um tempo fixo e triunfa quem maior quilometragem efectuar.
Foi o caso das 12 Horas de Vila Real de Santo António que, com as suas 4 edições entre 1986 e 1989, foi o verdadeiro detonador para distâncias impensáveis para a altura no nosso país, consubstanciadas em Ultra-Maratonas.
E tudo começou no ano anterior, 1985, quando os dias 5 e 6 de Abril ficaram na história da implantação de Ultra-Maratonas em Portugal. Essa foi a data escolhida para João Camarada correr 24 horas na sua terra natal de Vila Real de Santo António, iniciativa promovida pela Revista Spiridon, através do incansável professor Mário Machado, e o Grupo Desportivo Pic-Nic.
João Camarada era a pessoa ideal para tal feito pois apresentava no seu currículo façanhas como atravessar a pé o continente norte-americano, de Los Angeles a Nova Iorque, provas de 100 milhas (160.900 metros) e 5 presenças na Comrades Marathon, prova de 90 kms na África do sul, país para o qual tinha emigrado há cerca de 20 anos.
Aproveitando umas curtas férias portuguesas, foi realizada estas 24 horas como forma de incentivar a prática da corrida. O conceito era simples, João Camarada, então com 42 anos, corria as 24 horas através dum circuito plano idealizado entre Vila Real de Santo António e Monte Gordo. Durante esse período era acompanhado por quem o pretendesse fazer, apenas numa volta ou em mais.
Cada volta constava de 7.975 metros e, no final de cada, João Camarada parava 30 segundos para se reabastecer, sendo que de 4 em 4 voltas parava cerca de 5 minutos para ser massajado e comer, com os abastecimentos sólidos à base do suplemento Muesli.
Na primeira volta, cujo início foi dado ao meio-dia, demorou 58.33, ritmo próprio de quem ia cobrir uma (muito) larga distância.
João Camarada é o 3º a contar da direita, acompanhado por companheiros no momento que passa junto ao quadro que vai indicando os tempos de cada volta
Ao fim de quase 4 horas e quando entrava na carrinha para massagens, quem assistia e ignorava este tipo de procedimento, duvidava que o atleta fosse aguentar 24 horas. Cépticos esses que foram mudando a sua postura e o entusiasmo já fervilhava perto da meia-noite quando foram atingidos os 100 quilómetros, para se transformar em ambiente de festa logo pela manhã com o aproximar das 24 horas, que viriam a chegar, naturalmente, ao meio-dia, debaixo de grande ovação de muitas centenas de espectadores (ver foto). 173.990 metros foi a impressionante marca deste atleta que estava num patamar onde se julgava que outros portugueses não alcançassem, mas foi o facto de cinco atletas terem corrido com Camarada durante 10 horas seguidas, com dois a chegarem mesmo às 12 horas, que levou a organização a sonhar mais alto. Não uma prova dum homem só mas sim uma corrida aberta a vários, um verdadeiro desafio para quem se quisesse aventurar.
E assim ficou logo marcado para 29 de Março de 1986 o arranque para a 1ª edição das 12 Horas de Vila Real de Santo António, a primeira verdadeira Ultra-Maratona no nosso país.
As regras eram claras, sendo que apenas podiam tomar parte quem já tivesse participado em Maratonas. Cada volta tinha pouco mais de 7 quilómetros e terminava na zona de controlo, único local onde os atletas podiam sair do percurso para descansar, tendo sempre que avisar o júri desse propósito, sob pena de desclassificação.
Não sendo obrigatório estar sempre a correr, era no entanto condição fazê-lo na última meia-hora, só recebendo prémio quem completasse um mínimo de 50 quilómetros.
Havendo abastecimento por parte da organização em dois pontos do circuito, os atletas eram livres para se abastecerem noutros locais, desde que não abandonassem o trajecto.
Quando já não havia tempo para a volta grande, os atletas eram encaminhados para uma volta média, para nos últimos minutos irem para a Praça Marquês de Pombal, onde ficavam às voltas até as 12 horas de corrida. Nesse momento, soava um apito e todos paravam no local onde se encontravam até ser medida a distância que tinham efectuado nessa volta e que ia ser somada ao número de voltas grandes e médias, dando a quilometragem total.
18 atletas partiram, dos quais 13 viriam a classificar-se. António Matias (na foto), o "pai" das provas de montanha, nomeadamente com a sua Manteigas-Penhas Douradas, entrou para a história como o primeiro vencedor, perfazendo a incrível distância de 121.985 metros! Cinco outros atletas viriam a ultrapassar os míticos 100 quilómetros: José Vilela (115.650), José Militão (112.750), Rodolfo Martins (112.005), Carlos Jesus (111.160) e Agostinho Simão (102.485). João Camarada segui-se-lhes com 97.060 e participaram 2 atletas femininas, Ana Camarada (73.325) e Dora Pinto (51.150).
Ainda em relação ao vencedor, duas curiosidades. Quando estava a quebrar psicologicamente, António Matias terminou uma volta convencido que tinha feito um mau tempo quando ouviu que afinal tinha sido a melhor de todas as suas voltas, o que lhe levou a força anímica do 8 ao 80.
No final da prova, ao ser interrogado se participaria na 2º edição, proferiu um convicto e sincero "Não!". Nessa mesma noite, quando já se encontrava deitado, começou a sonhar com a 2ª edição...
Quantas vezes algo de semelhante já nos aconteceu? Regra de ouro, nunca afirmar nada nos momentos após terminar uma prova!
A classificação completa pode ser consultada aqui
Depois da edição inaugural, e do que provou ser possível, a 2ª viria a aumentar praticamente para o dobro os atletas classificados. Mas isso é motivo para a 2ª parte deste artigo, a aparecer amanhã.
(Fotografias deste artigo: Revista Spiridon e Arquivo Jornal do Algarve)
Hora aqui está um excelente contributo para as historia da ultra maratona em Portugal.
ResponderExcluirAs 12 horas de Vila Real de Santo António foram um marco pioneiro na historia da ultra maratona em Portugal.
Excelente trabalho de pesquisa de João Lima (já estamos habituados a qualidade jornalística deste blogue). Agradecemos a referencia que nos é feita mas apenas contribuímos, dentro das nossas possibilidades, para que a historia das 12 horas de Vila Real de Santo António seja conhecida de todos.
Esperamos, ansiosamente, o próximo capitulo deste, excelente, trabalho de investigação histórica.
Super, super-interessante. Um abraço pela excelente memória, Jorge Branco e João Lima.
ResponderExcluirAmigo José Costa Alves. A excelente memória é a do Jorge Branco que viveu esta aventura por dentro, como se poderá ler amanhã.
ResponderExcluirEu limitei-me a compilar as informações que recolhi dele e dos seus arquivos.
Um abraço
Bela história, amigos João e Jorge! E estes bravos merecem ser recordados!
ResponderExcluirUm abraço e parabéns!
Aos dois, João e Jorge os meus PARABÉNS!
ResponderExcluirImpressionante, adorei ler!
Adorei a história! Vou ler mais!
ResponderExcluir