sexta-feira, 13 de abril de 2018

Efeméride: 15 anos dum dos mais fabulosos records mundiais


Sendo o Atletismo uma modalidade multi-disciplinar, multi-género e multi-escalão, conta com muitos records mundiais. Todo e qualquer um é fantástico pois significa que alguém fez o que nunca tinha sido efectuado por qualquer um dos milhares de atletas mundiais.

Mas sendo qualquer um fantástico, alguns ganham uma mística especial por razões como a quebra de alguma barreira, seja cronométrica ou distância, ou pela diferença alcançada em relação à anterior marca.
E é exactamente essa última razão o mote para esta efeméride.  

13 de Abril de 2003, 23ª Maratona de Londres. A britânica de 29 anos Paula Radcliffe alinhava à partida com o favoritismo normal de quem era a recordista mundial. 
Exactamente 6 meses antes (13 de Outubro de 2002), tinha batido de forma extraordinária o record mundial da Maratona em Chicago, com a marca de 2.17.18, retirando a incrível fatia de quase minuto e meio (1.29 para ser exacto) ao anterior record, pertença de Catherine Ndereba desde a mesma Maratona de Chicago mas do ano anterior, 2001.

Já tinha sido uma quebra fenomenal, a maior desde 1983. Recordemos que a primeira Maratona oficial feminina decorreu apenas no ano anterior de 1982, nos Europeus de Atenas com a vitória da nossa Rosa Mota.

O que ainda não se sabia, à hora da partida desta Maratona, é que esse 13 de Abril de 2003 iria ficar para a história como um dos records mundiais mais extraordinários, pelas razões em cima apontados.

Senhora duma aparência muito serena, com ar de quem não faz mal a uma mosca, Paula Radcliffe transfigurava-se a correr, parecendo uma guerreira em esforço final por cada passada que dava. Uma lutadora de fibra, regressando o seu ar sereno após o esforço.

Faz hoje 15 anos, Paula fez, segundo o director de prova Dave Bedford, antigo recordista mundial dos 10.000 metros (27.30,80 em 1973, marca batida em 1977) "a maior performance em corrida de fundo que vi em toda a minha vida".



Paula quis atacar o seu record e fê-lo com a máxima preparação, determinação e empenho. De tal maneira que aos 20 km já seguia 1 minuto à frente da sua própria marca realizada 6 meses antes. Adivinhava-se o minuto 16, facto sensacional e dificilmente sonhado pouco tempo antes mas desde que Paula aguentasse o ritmo diabólico, o que muitos especialistas não acreditavam ser possível, como o seu fisiatra Gerard Hartmann que dizia "Ela vai rebentar! Não vai passar dos 30!"

Ajudada por uma multidão em delírio pela prestação da sua atleta, Paula chega a estar 2 minutos à frente da sua marca! Começa então a sofrer ameaças de cãibras mas a quebra de ritmo é pouco perceptível, ganhando uma energia suplementar quando sabe que podia baixar do minuto 16! E a história é curiosa de ser narrada. O antigo medalhado de bronze Peter Elliott estava na moto da câmara da BBC e recebeu um pedido de mensagem do treinador e marido de Paula, Gary Lough. Peter gritou-lhe então "Gary disse que se acelerares chegas antes do minuto 16". Pensando para si própria "Vai-te lixar Gary, eu vou o mais rápido que consigo!". O que é certo é que essa "cenoura" deu-lhe aquela força extra que parecia já não ser possível. 

E baixa do minuto 16 e de que maneira! Com um final com tudo no limite, indo buscar forças onde já não existiam, Paula corta a meta em 2 horas 15 minutos 24 segundos e 6 décimos, sendo considerada a marca de 2.15.25!!!



A fatia retirada, ainda foi maior que a anterior, cifrando-se em menos 1 minutos e 53 segundos!!! Em relação à marca da 2ª melhor atleta de sempre na altura, estamos a falar de 3 minutos e 22 segundos!

A sua táctica foi... correr sem limites! E com um excelente split negativo: 1.08.02 na 1ª metade e 1.07.23 na 2ª!

A notícia deixou o mundo do Atletismo boquiaberto com tamanha façanha. Foi considerado que Paula alcançou o impossível. E 15 anos depois, mantém-se a mesma sensação de impossível que foi possível pela prova perfeita, num dia perfeito, com a forma perfeita!

Note-se que o tempo de Paula ficou dentro dos mínimos para os mundiais de Paris desse ano... no sector masculino!

E passados 15 anos? Ninguém se aproximou significativamente. A segunda melhor marca é de Mary Keitany, desde Londres do ano passado, mas a 1.36, fazendo desta marca ainda uma miragem.

Atentemos nas melhores 10 marcas de sempre até ao dia de hoje:

Lugar
Tempo
Atleta
País
Maratona
Data
1
02:15:25
Paula Radcliffe
Grã-Bretanha
Londres
2003-04-13
2
02:17:01
Mary Keitany
Quénia
Londres
2017-04-23
3
02:17:18
Paula Radcliffe
Grã-Bretanha
Chicago
2002-10-13
4
02:17:42
Paula Radcliffe
Grã-Bretanha
Londres
2005-04-17
5
02:17:56
Tirunesh Dibaba
Etiópia
Londres
2017-04-23
6
02:18:31
Tirunesh Dibaba
Etiópia
Chicago
2017-10-08
7
02:18:37
Mary Keitany
Quénia
Londres
2012-04-22
8
02:18:47
Catherine Ndereba
Quénia
Chicago
2001-10-07
9
02:18:56
Paula Radcliffe
Grã-Bretanha
Londres
2002-04-14
10
02:18:58
Erba Gelana
Etiópia
Roterdão
2012-04-15

Curiosidades: 
- Paula Radcliffe não só é a detentora do record mundial como tem 4 marcas no top10
- Enquanto no sector masculino a Maratona de Berlim domina com 7 marcas nas 10 melhores, no sector feminino a predominância é de Londres com 6 marcas, seguida de Chicago com 3 e Roterdão 1. A melhor de Berlim no sector feminino está em 11º. 

Outra curiosidade é que só em 1958 o sector masculino alcançou uma marca melhor que as 2.15.25. Por outras palavras, os homens necessitaram de 62 anos de evolução na Maratona para alcançar tal patamar (a primeira Maratona realizou-se nos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna em 1896). 
Em constraste com os 62 anos, o sector feminino necessitou de apenas 21 anos para chegar a uma tal marca, considerando 1982 como o da primeira Maratona feminina oficialmente reconhecida pela IAAF.

Recordemos que apenas foi permitida a participação feminina nos Jogos Olímpicos em 1928 e com a distância máxima de 800 metros. No entanto, especialistas (?) consideraram que tal distância era demais para o "frágil" corpo duma mulher, com justificações "científicas" como correrem distâncias dessas poderiam provocar a queda do útero (!!!) e essa distância esteve proibida até 1960, sendo 400 metros o limite. Apenas em 1972 puderam participar nos 1.500 metros para tudo se normalizar nos anos 80, apesar da bizarria de nos Jogos Olímpicos de 1984 fazer parte do programa a Maratona mas não os 10.000 que apenas surgiram em 1988.
Hoje em dia, mulheres há que correm centenas de quilómetros numa só prova...  



Lamentavelmente, este record esteve administrativamente em perigo em 2011 quando a IAAF quis anular as marcas que tivessem sido obtidas em provas mistas, o que era o caso das 2.15.25 de Paula Radcliffe mas não os também seus 2.17.18 que ficariam como record vigente, no que seria um enorme crime contra este feito inolvidável.

Felizmente voltaram atrás, digamos a 50%, criando 2 records, o absoluto e o de provas exclusivas femininas (pode ser realizado em provas mistas mas com partida antecipada).

Este é um assunto, na minha opinião, altamente controverso. Uma atleta ser acompanhada por um homem pode ajudar mas continuam a ser as suas pernas a conseguir cumprir a distância. 
Fala-se em ajuda competitiva. Pergunto eu: Será de criar dois records no sector masculino para os realizados com recurso a lebres e os sem lebres? Pela anterior consideração, a utilização de lebres não será também uma ajuda competitiva? 
Sim, sei que seria muito difícil de policiar. Um atleta poderia servir de lebre, puxando demais no início e depois desistir e poderia ser utilizado o argumento que iria realizar toda a prova mas não geriu o andamento. Não seria possível provar que apenas tinha ido para servir de lebre nem provar que o atleta vencedor foi ajudado pelo facto. 
E no sector feminino? Como provar que sem a presença de atletas masculinos a atleta não faria o mesmo?

Como disse, é controverso e, na minha opinião muito pessoal, a IAAF não deveria ter criado esta clivagem. Mas já sou eu a divagar pois o que conta hoje é reter a efeméride deste fantástico e inacreditável record mundial.

Foi há 15 anos. Quantos mais durará e quem o poderá bater?



8 comentários:

  1. Fantástico! Essa dos dois records realmente não tem jeito nenhum, nunca tinha ouvido falar disso! Parece-me é que os senhores estão a ver que ninguém se aproxima do record e isso deve ser "mau para o negócio", então toda a descredibilizar este.

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  2. João

    Este post merecia estar grafado numa revista de desporto.
    Dá gosto ler os teus artigos. Muitos parabens. IC

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  3. João, antes de mais, obrigado por mais esta pérola de conhecimento.

    Não sabia em que contornos o record tinha sido obtido.
    Gosto muito deste tipo de curiosidades como este e embora uma senhora de certeza, essa tradução do comentário ao Peter Elliott, é de certeza muito censurada :)

    Não fazia ideia dessa clivagem de records, mistos ou meramente femininos, não sabia que a fundamentalismo próprio de algumas religiões (no limite, quase todas) já tinha chegado à IAAF.

    Abraço

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  4. Espetáculo de artigo João! Muito obrigado!

    E sim, é um autêntico disparate haver dois tipos de recordes no setor feminino. Para isso, tal como dizes, tem de haver dois no masculino: com lebres e sem lebres.

    Um abraço

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  5. Excelente artigo! Muito bom mesmo!

    Quanto à clivagem criada pela IAAF sobre os recordes femininos em provas mistas vs provas exclusivamente femininas, é mais de um mesmo há muito conhecido e sentido e por muitos consentido. Assunto que dá pano para mangas, muitas mangas!

    Por agora, congratulo-te por este artigo de primeira água que assinala um feito notável de uma atleta excepcional!

    obrigada!

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  6. Como sempre, excelente texto!

    O fantástico record de Paula Radcliffe vai durar décadas penso eu... é tão mas tão incrível!!! ainda agora na maratona de Paris a vencedora (a queniana Betsy Saina) terminou em 2:22:56 e foi considerado um enorme feito!
    A nossa campeã Rosa Mota que dominou os rankings mundiais da maratona durante a década de 80 possui o record nacional com 2:23:29, marca fabulosa que perdura desde 1985!!! Hoje em dia é raro alguma mulher portuguesa baixar das 2h30 e não é todos os anos que algum homem baixa das 2h15...

    Sobre a polémica, penso que estão a tirar alguma da magia do atletismo, daquilo que nos faz sonhar, os records, as grandes vitórias, os grandes feitos... mas com fundadas razões infelizmente: quem acompanha e gosta de atletismo sabe bem que alguns desses grandes resultados não foram obtidos de forma limpa (atenção não é o caso deste aqui descrito pelo João Lima), havendo inúmeras suspeitas sobre alguns records mundiais... quem não se lembra do famoso sangue de tartaruga das atletas chinesas nos anos 90 (e do seu súbito desaparecimento da alta competição...), ou das auto-transfusões de sangue (Lasse Viren, 1976), ou das "anomalias" hormonais verificadas em muitos atletas da antiga RDA... seja por via do doping ou por outras "ajudas" tal como as referidas lebres ou por exemplo a questão da definição/limites de género (ver Caster Semenya), a verdade é que hoje em dia a descrição dos records tem que incluir as circunstâncias em que eles foram obtidos, porque há records... e "records"

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  7. Que lindo artigo!
    Fiquei a conhecer um pouco mais a história e feitos dessa grande atleta. Quanto à parvoíce dos recordes obtidos em provas mistas terem estado em causa (não sabia), inteiramente de acordo contigo.
    Muito obrigado!

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  8. Ontem, ao ver a maratona de Londres, lembrei-me deste teu excelente artigo.

    A uma dada altura a Mary Keitany ia com passagens de 1 minuto abaixo do record do mundo, embora depois tenha tido uma quebra enorme.

    Foi, aliás, impressionante ver a ultrapassagem que a Vivian, vinda de um atraso de quase minuto e meio, lhe fez, com uma passada incrível, como se a Mary fosse apenas uma atleta secundária da prova.

    Aquela imagem da ultrapassagem, com as lebres a largarem a Mary e passarem a acompanhar a Vivian e a Mary a ser deixada à sua sorte, completamente sozinha, mostra bem a 'crueldade' do que é a maratona naqueles momentos em que as/os atletas já seguem muito separados.

    Abraço e obrigado pelo post
    Ricardo

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