Sendo o Atletismo uma modalidade multi-disciplinar, multi-género e multi-escalão, conta com muitos records mundiais. Todo e qualquer um é fantástico pois significa que alguém fez o que nunca tinha sido efectuado por qualquer um dos milhares de atletas mundiais.
Mas sendo qualquer um fantástico, alguns ganham uma mística especial por razões como a quebra de alguma barreira, seja cronométrica ou distância, ou pela diferença alcançada em relação à anterior marca.
E é exactamente essa última razão o mote para esta efeméride.
13 de Abril de 2003, 23ª Maratona de Londres. A britânica de 29 anos Paula Radcliffe alinhava à partida com o favoritismo normal de quem era a recordista mundial.
Exactamente 6 meses antes (13 de Outubro de 2002), tinha batido de forma extraordinária o record mundial da Maratona em Chicago, com a marca de 2.17.18, retirando a incrível fatia de quase minuto e meio (1.29 para ser exacto) ao anterior record, pertença de Catherine Ndereba desde a mesma Maratona de Chicago mas do ano anterior, 2001.
Já tinha sido uma quebra fenomenal, a maior desde 1983. Recordemos que a primeira Maratona oficial feminina decorreu apenas no ano anterior de 1982, nos Europeus de Atenas com a vitória da nossa Rosa Mota.
O que ainda não se sabia, à hora da partida desta Maratona, é que esse 13 de Abril de 2003 iria ficar para a história como um dos records mundiais mais extraordinários, pelas razões em cima apontados.
Senhora duma aparência muito serena, com ar de quem não faz mal a uma mosca, Paula Radcliffe transfigurava-se a correr, parecendo uma guerreira em esforço final por cada passada que dava. Uma lutadora de fibra, regressando o seu ar sereno após o esforço.
Faz hoje 15 anos, Paula fez, segundo o director de prova Dave Bedford, antigo recordista mundial dos 10.000 metros (27.30,80 em 1973, marca batida em 1977) "a maior performance em corrida de fundo que vi em toda a minha vida".
Paula quis atacar o seu record e fê-lo com a máxima preparação, determinação e empenho. De tal maneira que aos 20 km já seguia 1 minuto à frente da sua própria marca realizada 6 meses antes. Adivinhava-se o minuto 16, facto sensacional e dificilmente sonhado pouco tempo antes mas desde que Paula aguentasse o ritmo diabólico, o que muitos especialistas não acreditavam ser possível, como o seu fisiatra Gerard Hartmann que dizia "Ela vai rebentar! Não vai passar dos 30!"
Ajudada por uma multidão em delírio pela prestação da sua atleta, Paula chega a estar 2 minutos à frente da sua marca! Começa então a sofrer ameaças de cãibras mas a quebra de ritmo é pouco perceptível, ganhando uma energia suplementar quando sabe que podia baixar do minuto 16! E a história é curiosa de ser narrada. O antigo medalhado de bronze Peter Elliott estava na moto da câmara da BBC e recebeu um pedido de mensagem do treinador e marido de Paula, Gary Lough. Peter gritou-lhe então "Gary disse que se acelerares chegas antes do minuto 16". Pensando para si própria "Vai-te lixar Gary, eu vou o mais rápido que consigo!". O que é certo é que essa "cenoura" deu-lhe aquela força extra que parecia já não ser possível.
E baixa do minuto 16 e de que maneira! Com um final com tudo no limite, indo buscar forças onde já não existiam, Paula corta a meta em 2 horas 15 minutos 24 segundos e 6 décimos, sendo considerada a marca de 2.15.25!!!
A fatia retirada, ainda foi maior que a anterior, cifrando-se em menos 1 minutos e 53 segundos!!! Em relação à marca da 2ª melhor atleta de sempre na altura, estamos a falar de 3 minutos e 22 segundos!
A sua táctica foi... correr sem limites! E com um excelente split negativo: 1.08.02 na 1ª metade e 1.07.23 na 2ª!
A notícia deixou o mundo do Atletismo boquiaberto com tamanha façanha. Foi considerado que Paula alcançou o impossível. E 15 anos depois, mantém-se a mesma sensação de impossível que foi possível pela prova perfeita, num dia perfeito, com a forma perfeita!
Note-se que o tempo de Paula ficou dentro dos mínimos para os mundiais de Paris desse ano... no sector masculino!
E passados 15 anos? Ninguém se aproximou significativamente. A segunda melhor marca é de Mary Keitany, desde Londres do ano passado, mas a 1.36, fazendo desta marca ainda uma miragem.
Atentemos nas melhores 10 marcas de sempre até ao dia de hoje:
Lugar
|
Tempo
|
Atleta
|
País
|
Maratona
|
Data
|
1
|
02:15:25
|
Paula
Radcliffe
|
Grã-Bretanha
|
Londres
|
2003-04-13
|
2
|
02:17:01
|
Mary Keitany
|
Quénia
|
Londres
|
2017-04-23
|
3
|
02:17:18
|
Paula
Radcliffe
|
Grã-Bretanha
|
Chicago
|
2002-10-13
|
4
|
02:17:42
|
Paula
Radcliffe
|
Grã-Bretanha
|
Londres
|
2005-04-17
|
5
|
02:17:56
|
Tirunesh
Dibaba
|
Etiópia
|
Londres
|
2017-04-23
|
6
|
02:18:31
|
Tirunesh
Dibaba
|
Etiópia
|
Chicago
|
2017-10-08
|
7
|
02:18:37
|
Mary Keitany
|
Quénia
|
Londres
|
2012-04-22
|
8
|
02:18:47
|
Catherine
Ndereba
|
Quénia
|
Chicago
|
2001-10-07
|
9
|
02:18:56
|
Paula
Radcliffe
|
Grã-Bretanha
|
Londres
|
2002-04-14
|
10
|
02:18:58
|
Erba Gelana
|
Etiópia
|
Roterdão
|
2012-04-15
|
Curiosidades:
- Paula Radcliffe não só é a detentora do record mundial como tem 4 marcas no top10
- Enquanto no sector masculino a Maratona de Berlim domina com 7 marcas nas 10 melhores, no sector feminino a predominância é de Londres com 6 marcas, seguida de Chicago com 3 e Roterdão 1. A melhor de Berlim no sector feminino está em 11º.
Outra curiosidade é que só em 1958 o sector masculino alcançou uma marca melhor que as 2.15.25. Por outras palavras, os homens necessitaram de 62 anos de evolução na Maratona para alcançar tal patamar (a primeira Maratona realizou-se nos primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna em 1896).
Em constraste com os 62 anos, o sector feminino necessitou de apenas 21 anos para chegar a uma tal marca, considerando 1982 como o da primeira Maratona feminina oficialmente reconhecida pela IAAF.
Recordemos que apenas foi permitida a participação feminina nos Jogos Olímpicos em 1928 e com a distância máxima de 800 metros. No entanto, especialistas (?) consideraram que tal distância era demais para o "frágil" corpo duma mulher, com justificações "científicas" como correrem distâncias dessas poderiam provocar a queda do útero (!!!) e essa distância esteve proibida até 1960, sendo 400 metros o limite. Apenas em 1972 puderam participar nos 1.500 metros para tudo se normalizar nos anos 80, apesar da bizarria de nos Jogos Olímpicos de 1984 fazer parte do programa a Maratona mas não os 10.000 que apenas surgiram em 1988.
Hoje em dia, mulheres há que correm centenas de quilómetros numa só prova...
Lamentavelmente, este record esteve administrativamente em perigo em 2011 quando a IAAF quis anular as marcas que tivessem sido obtidas em provas mistas, o que era o caso das 2.15.25 de Paula Radcliffe mas não os também seus 2.17.18 que ficariam como record vigente, no que seria um enorme crime contra este feito inolvidável.
Felizmente voltaram atrás, digamos a 50%, criando 2 records, o absoluto e o de provas exclusivas femininas (pode ser realizado em provas mistas mas com partida antecipada).
Este é um assunto, na minha opinião, altamente controverso. Uma atleta ser acompanhada por um homem pode ajudar mas continuam a ser as suas pernas a conseguir cumprir a distância.
Fala-se em ajuda competitiva. Pergunto eu: Será de criar dois records no sector masculino para os realizados com recurso a lebres e os sem lebres? Pela anterior consideração, a utilização de lebres não será também uma ajuda competitiva?
Sim, sei que seria muito difícil de policiar. Um atleta poderia servir de lebre, puxando demais no início e depois desistir e poderia ser utilizado o argumento que iria realizar toda a prova mas não geriu o andamento. Não seria possível provar que apenas tinha ido para servir de lebre nem provar que o atleta vencedor foi ajudado pelo facto.
E no sector feminino? Como provar que sem a presença de atletas masculinos a atleta não faria o mesmo?
Como disse, é controverso e, na minha opinião muito pessoal, a IAAF não deveria ter criado esta clivagem. Mas já sou eu a divagar pois o que conta hoje é reter a efeméride deste fantástico e inacreditável record mundial.
Foi há 15 anos. Quantos mais durará e quem o poderá bater?