|
És minha! |
Quis o acaso que nos cruzássemos. E desde então, anseio com cada teu novo reencontro.
Como explicar sensações tão intensas que nos parecem irreais? Como explicar emoções tão profundas que nos dominam por completo? Como explicar aquela que foi a minha corrida mais inteligente, divertida e emocional que alguma vez fiz? Como explicar o receio e ansiedade que me assaltaram em especial na última noite? Como explicar a felicidade extrema de ver amigos do coração conseguirem feitos sensacionais?
|
6 atletas medalhados, 6 atletas felizes, 6 atletas que se suplantaram! |
Km 37 - Depois duma rua com esplanadas e muitos gritos de apoio, o que é uma constante nesta prova, começo a ouvir música duma banda. Ao olhar em frente vejo muita animação desses músicos a tocarem e saltarem, deixando apenas um pequeno corredor para passarmos. A música é do Indiana Jones, um som triunfal de herói de aventuras. Mas não é só o Indiana que é herói (fictício), eu nessa altura também me sinto um herói (real), levanto os braços e passo nesse corredor aos saltos. Sim, aos saltos! Quem me diria que alguma vez numa Maratona saltaria dessa maneira com 37 kms nas pernas? Era o estado de felicidade que mantinha desde a partida
|
Na feira da Maratona, já com os dorsais |
3 da manhã - Acordo e não durmo mais. Faltam 6 horas para começar a Maratona e não consigo dormir. Não seria preocupante se nas anteriores 5 noites tivesse dormido mais do que 4 horas em todas com excepção duma que foram 5. O descanso é fundamental e a ansiedade traiu-me nesta semana! (a sombra de 6 de Outubro sempre presente!). A Mafalda apercebe-se que estou acordado e só ouve da minha parte "Não vou conseguir!". Estava cansado demais. Fisicamente não me sentia em condições nem para 10 kms quanto mais uma Maratona, distância que só tinha realizado uma vez, em forma e com uma preparação perfeita.
O querer era enorme mas a constatação que tinha chegado ao dia sem o trabalho mínimo feito, por um inoportuno problema pulmonar, era doloroso.
Para tentar ajudar, faz-me massagens nas pernas, mas o estado de cansaço era geral.
|
Um apoio de ouro. Mulher e filhos :) |
Km 39 - O único em que senti cansaço forte e o que mais andei. Devo ter feito cara de dificuldade e uma espectadora aproxima-se de mim e com os dedos faz aquele gesto de pouco e diz em catalão "Podes pensar que estás esgotado mas ainda tens isto de força. Vais conseguir!" De imediato retomo a corrida levantando bem alto o punho em sinal de vitória, agradecendo as palavras. Mais do que gritos de apoio, muitos parecem que adivinham a frase ideal para nos transmitir em cada momento.
|
Até cartazes de apoio tínhamos! |
6 e 40 da manhã - Pequeno almoço. Assusto todos os meus amigos com a cara que cheguei à mesa. Surpreendidos e meio assustados, tentam animar-me mas não estou virado para esse lado. Depois do 6 de Outubro, não posso tornar a desistir, deixando em perigo a continuação da minha carreira de maratonista. Quero muito aquela meta e tenho muitas maratonas sonhadas. Entre as quais uma daqui a ano e meio que terá um significado muito especial, mas isso são contas doutro rosário. Quero, quero, mas não estou preparado. Não fiz longos, o problema pulmonar debilitou-me fisicamente, e a tosse que mantenho não engana que a coisa ainda não está a 100%. Estou a horas de estragar outro sonho e este muito forte.
|
Os 4 "4 ao km" presentes. Infelizmente falta aqui alguém que não merecia a contrariedade que sofreu, naquele que foi o momento duro do fim-de-semana. Força amiga! |
Km 40 - Vejo a placa 40 e mal consigo acreditar que vou tão folgado e feliz. Nesta altura, arrastava-me penosamente na Maratona de estreia. Agora estou à vontade. A táctica funcionou na perfeição!
Não a quis divulgar a ninguém. Não queria pressões pois necessitava de estar descansado e sabia que se a divulgasse, naturalmente caiam em cima de mim pois pareceria um suicídio. Mas era a minha única hipótese.
Sem dúvida que treinos importantes que nos correm mal, acabam por nos ensinar imenso. O único que pude efectuar maiorzinho foi 3 semanas antes e foi péssimo. Mas o melhor que me poderia ter acontecido pelo que me ensinou. Sabia que a táctica tinha de ser de sobrevivência e era a que dizia que ia fazer. Mal imaginavam que para sobreviver teria que atacar. Naquele treino, vi que arrastar-me na primeira Meia para me salvaguardar, levar-me-ia até talvez perto dos 24. 24 feitos em muito tempo o que já me desgastaria (porque não é só a velocidade que desgasta mas o tempo que se está em esforço). Chegaria aí cansado e com pouca margem para, ao ter que misturar caminhada e corrida, chegar antes do limite. Mas se colocasse uma média de 6.00 (o que para mim numa distância destas é rápido), passaria aos 20 kms a bater as 2 horas. Ficaria com 4 horas para 22 kms o que de imediato me tranquilizaria. Como não sabia como reagiria a um muro ou cansaço extremo, por causa de estar ainda debilitado, entre os 20 e os 30 forçava-me a caminhar 200 metros e correr 800 em cada km. Mas tinha que ser cumprido ao metro. A partir dos 30 tentar manter este esquema mas se nalgum sentisse necessidade de em vez de andar 200, fosse 250 ou 300, tudo bem.
E foi assim, analisando todos os prós e contras que concluí que esta era a única táctica para me levar à meta e antes do controlo fechar.
|
Os 6 atletas do grupo da viagem, com o Nuno na sua posição de marca :) |
8 da manhã - Vamos ao carro deixar os fatos de treino. Após o primeiro contacto que me assustou ainda mais, o ar fresco (frio mesmo) teve o condão de me acalmar e mudar. Comecei a sentir o empenho, a força, a dedicação. É isto que quero, é isto pelo qual vou lutar. Vejo ao fundo a entrada do túnel. O tal momento repetido exaustivamente no meu pensamento. Entrar no túnel, passar à pista e dirigir-me à meta.
Regresso ao pé do restante pessoal e já sou outro. Venha a Maratona!
|
A alinhar para a partida |
Km 41 - Na primeira parecia-me que faltar um quilómetro era outra Maratona em si. Agora era desfrutar. Queria chegar. Queria cortar a meta. Mas também queria prolongar o prazer de estar nesta corrida. Pelo público e pelo momento que atravessava. A táctica tinha sido perfeita. 20 kms em grande e o resto controlado. Os conhecidos que me ultrapassavam naqueles metros que andava, davam-me apoio, pensando que ia em dificuldade mas logo viam o meu sorriso rasgado a dizer que estava tudo bem controlado.
Não imagino o número de vezes que levantava os braços para agradecer ao público, a série de gracias que dei, o sorriso que lhes fazia e que me levou a ouvir muitas vezes 'guapo!'. Foi tudo memorável, foi tudo melhor que num sonho. Nada de sofrimento exagerado, de muros. Apenas divertimento, felicidade e emoção. Muita emoção. Várias vezes o apoio era tal que me vinham as lágrimas aos olhos. Verdade seja dita, as lágrimas eram tanto pelo apoio como pela constatação que ia conseguir.
Sou de 1960, cresci a ouvir sempre o que os miúdos dessa época ouviam. "Um homem não chora". Como se o ser homem nos transformasse num bloco de pedra e gelo sem emoções ou a superá-las com ar de matador. Se Descartes dizia 'penso, logo existo', sou pelo 'emociono-me, logo existo'.
Falta um quilómetro e já vejo o estádio. O tal túnel está à porta. Duas atletas da Açoreana estão junto à sua camioneta, vêm-me ao fundo e gritam por mim, vindo correr na minha direcção. Respondo com outro ritmo mais vivo. Ritmo que irá até à meta. Meta que desde o 2º quilómetro soube que ia ser minha.
|
Ao km 10 grito para a Mafalda "Eu vou conseguir" para a sossegar para o ritmo que levava. Tudo estudado, tudo controlado |
Km 2 - Após a partida, as primeiras centenas de metros junto ao casal Isa & Vítor. À frente, o casal Sandra & Nuno. Sinto-me bem, as pernas respondem, a pulsação está perfeita. Aproxima-se o final do primeiro quilómetro e está na hora de fazer o teste. Um quilómetro a atacar e ver a reacção. Se boa, partia para a tal táctica. Caso contrário, ia pelo que seria lógico, calmamente, mas com o receio do falhanço.
Sem nada dizer, deixo a Isa & Vítor, chego ao lado da Sandra & Nuno, a Sandra exclama 'gosto deste João', mas logo se assustou, tal como os restantes. Eu tinha disparado, eu tinha desaparecido fugindo pelo pelotão dentro. Consciente que iria assustar todos os presentes e o Jorge Branco que estava a acompanhar os tempos pelo site e que iria chamar-me todos os nomes nas minhas passagens. Mas era o que tinha que fazer, mesmo sabendo que esta é uma táctica que não se usa na Maratona. Mas era a única que nestas condições me poderia salvar, por mais paradoxal que possa parecer. Cada um de nós é um caso e temos momentos estranhos. Como o saber algo quando falta tanto. Na memorável Meia dos Descobrimentos, aos 5 kms já tinha a certeza que ia fazer um super tempo pois sabia que aquele ritmo não ia quebrar. Há dias que os sinais que recebemos dão-nos essa garantia. E neste domingo foi o que se passou. Aos 2 kms soube que ia aguentar bem mais 40. Só não imaginava que o tempo ia ser tão surpreendente.
Todos nós sonhamos com o que consideramos impossível mas neste estado actual baixar das 5.30 seria mesmo impossível.
Mas o João de domingo não conhecia essa palavra e continuei a cumprir tudo à risca. Sempre feliz, sempre divertido, sempre emocionado.
|
27 a caminho do 28 |
Km 41,7 - A volta exterior ao estádio prolongava-se. Haveria de chegar ao portão Sur, ao tal, mas continuava a percorrer o seu exterior. Curvo e de repente vejo o portão à minha frente. Com a velocidade com que o sangue salta pela carótida, as lágrimas começaram a deitar tudo cá para fora do que esteve reprimido desde 6 de Outubro, do que esteve ameaçado para esta meta. Do que temi. Oiço berros. A Sandra e o Nuno do lado direito, a Nora e Margarida do esquerdo. A respiração sempre controlada, baralhou-se por completo com a mistura de ansiedade de estar quase o tocar o céu.
Entro no túnel e vem-me à memória a Divina Comédia de Dante. As coisas que nos lembramos em momentos limites!
Para quem não sabe, a Divina Comédia foi escrita há 700 anos. De comédia nada tem. As obras da época eram divididas em tragédia e comédia. Tragédia usava uma linguagem apenas entendida por eruditos, enquanto a comédia utilizava linguagem entendível por todos.
Esta obra condicionou e condiciona toda a iconologia e percepção que temos de inferno e paraíso. É uma viagem dividida em 3 partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Começa-se no inferno, segue-se o purgatório onde se purga por todos os motivos que levaram ao inferno e acaba-se em pureza no paraíso.
Porque me veio à ideia esta obra em pleno túnel, em plena convulsão de emoções? A 6 de Outubro tive o meu inferno. Desde então, passei o resto do tempo a purgar o que se passou nesse dia. Agora, vendo a claridade ao final do túnel, sentia que ia entrar no paraíso!
|
Uma constante nesta prova. Sempre a sorrir! :) |
Km 4 - Rui Cabral, o português com maior número de Maratonas (chegará às 300 em Novembro!!!), chama-me. Ordena-me 'hoje é para acabar!' e eu feliz por o reencontrar, sentindo isso como mais um sinal, pois também estive nos primeiros quilómetros da da minha estreia a falar com ele. Olhando para ele e interrogando-me como se consegue chegar a um número destes!
|
Linda! |
Km 41,9 - Entro no estádio. Piso o tartan, liberto toda a alegria. Levanto os braços, baixo os braços, dou as mãos a mim próprio. Falo, grito. Não sou narcisista, longe disso, mas neste momento tive uma admiração enorme por mim. Há 39 dias, escrevia um muito sentido 'Sinto-me tão triste!' aos amigos mais chegados, conhecedor que não poderia participar nesta Maratona, em virtude do problema de alguma gravidade que me apareceu. Mas o desejo era tão grande que cerrei os punhos, fui à luta recusando-me a deitar a toalha ao chão e neste momento estava em êxtase a correr de braços abertos para esta paixão chamada meta de Maratona.
Faço a última curva, estou de frente. Tento esticar mais os braços como que a agarrar já. A Mafalda filma e acena ao mesmo tempo. A Joana e o Ricardo estão nas bancadas. Não os vejo mas sinto-os. E sinto que levo um pelotão comigo. Todos vós, que sempre me apoiaram, que sempre me fizeram crer. Todos cortámos a meta. Reacção instintiva e habitual em mim, meto as mãos na cabeça, vergado pela emoção. O tempo? 5.07.59! 5.07.59! Além da corrida mais divertida, feliz e emocional, um tempo completamente impossível para o momento actual. Apenas a 5.46 dum record em momento perfeito de forma e preparação. E nessa Maratona tive sempre a preciosa ajuda de companhia e nesta sempre sozinho. Tudo fruto da corrida mais inteligente que alguma fiz.
Chego ao pé das assistentes que colocam as medalhas. Mais lágrimas e um beijo muito sentida e carinhoso na medalha, na linda medalha.
Percorro os túneis até à saída. Lento, muito lento. Tanto queria ir ter com todos, como queria eternizar aquele momento.
|
Gente feliz! |
Km 15,5 - Tinha prometido a mim mesmo. Aos 15,5 fazia uma festa. Poderiam pensar o que quisessem, verem de repente um atleta festejar do nada. Mas era um festejo a enterrar um momento negro. Foi aos 15,5 a 6 de Outubro. Quis o acaso e grande coincidência que a Mafalda, Joana, Ricky, Nora e Margarida estivessem ali. Devem ter estranhado tanto euforia na minha passagem.
|
Com quem me dá tudo o que sou |
Após a meta - Saio do estádio. Vejo ao longe o Vítor que levanta os braços. Respondo efusivamente. A Isa é a primeira que encontro e o inevitável sucede. Abraçamo-nos a chorar. Mais quando lhe pergunto o tempo e oiço o fabuloso que ela fez. Pela 2ª vez estávamos abraçados a chorar. Naquilo que parece o mesmo acto, as razões são diametralmente opostas. A 1ª vez tinha sido ao km 15,5 a 6 de Outubro...
Segue-se um forte abraço ao Vítor e a chegada da Mafalda, para mais um muito emocional momento.
O que a Mafalda aturou nestes dias. Com alguém que passava do receoso 'Não vou conseguir' ao convicto 'Eu vou cortar aquela meta!' num espaço de minutos.
Seguiu-se o Ricardo, a Joana. E a Sandra. A Sandra! Mais um momento muito forte e especial! Foi a sua estreia e logo de sonho com uma prova doutro mundo. Nuno, perdido de orgulho pela sua menina, Orlando extremamente feliz por quase aos 60 continuar a baixar das 4 horas, Nora, Margarida...
Tudo gente feliz, orgulhosa e unida! Um momento ímpar!
|
Com a Sandra que fez uma Maratona de estreia para a qual não há palavras! |
O mais incrível é o que sofri na parte final da Maratona de estreia e agora acho que as 5 horas voaram rápido demais.
Há momentos e razões que não se explicam. Sentem-se!
Novamente junto a ti, nesta paixão que tanto tem de desejo como de lamento pelo tão escasso tempo que nos é reservado mas que deixa perdurar uma memória eterna.
Próximo reencontro: Porto, 2 de Novembro
|
Frente e verso dum troféu muito especial que o Nuno fez |
|
Os 5.08.08 foram engano meu. O tempo real é 5.07.59 |