(João Silva, autor do
excelente blogue “O que não mata, engorda e transforma-te num maratonista”,
pediu-me que redigisse um artigo que mostrasse que as contrariedades são
ultrapassáveis e que temos no desporto uma forma de nos transcendermos, baseado
no que me sucedeu. O artigo foi publicado no seu blogue no dia 3 e coloco-o
agora aqui para memória futura)
18.57 de 31 de Dezembro de 2019, momento em que corto a meta na sempre excitante São Silvestre da Amadora, uma vez mais repleta de entusiástico público que nos faz sentir, do primeiro ao último, especiais. A melhor maneira de terminar um ano!
Encerrava assim a minha 14ª
época de corridas. 14 anos onde participei em 466 provas, entre as quais 65
Meias-Maratonas e, a coroa de glória, 13 Maratonas concluídas. Mas se posso
colocar estes números, outros há impossíveis de quantificar, com especial
realce para o sempre presente prazer de corrida.
Nunca em 14 anos tive a mínima
falha de motivação, sempre focado ao máximo em correr e retirar todo o prazer
daí inerente, tornando-o em algo de fundamental na minha vida.
Mas às 18.57 desse dia, e a
rodear-me de amigos para as habituais trocas de impressões, nenhum destes
números em jeito de balanço estavam presentes. O olhar estava inteiramente
direcionado para o ano que iria começar dentro em pouco e nos objectivos que
idealizava, entre os quais, e aguardadas com muita expectativa, as Maratonas de
Madrid e Málaga e nos dois anos seguintes a de Berlim e a que mais desejava
fazer, após ter cumprido o sonho de correr em Paris, a Maratona de Loch Ness.
Impossível era de prever o que
o ano que estava prestes a iniciar iria trazer para todo o planeta. E em termos
pessoais, a notícia que nunca pensaria. Sempre me via a correr pelo resto da
vida fora. Até gracejava dizendo que ainda iria fazer uma Maratona aos 100. O
que não sabia é que nessas 18.57 do último dia do ano de 2019 as corridas
tinham acabado para mim!
No início de 2020, no joelho
esquerdo e vinda do nada, uma dor persistente e incapacitante de correr.
Tentei várias abordagens e
entendidos na matéria, tendo acabado por ir parar a um ortopedista especialista
em joelho. Com um movimento na perna, desde logo apercebeu que havia uma rotura
horizontal no menisco interno. Algo que uma ressonância magnética confirmou. E
pelo que se via, uma avançada condropatia, o maior problema.
Inevitável a intervenção
cirúrgica, com a esperança bem presente de que estava a passar apenas por um
interregno na corrida e que cerca dum mês depois recomeçaria.
Conheço quem tivesse o mesmo,
antes da operação ter sido avisado que as corridas tinham acabado mas durante a
mesma o médico constatar que afinal o estrago não era tão extenso como o exame
tinha dado a entender, o que permitia a continuação do desporto que nos
apaixonou. Infelizmente, comigo sucedeu o inverso. Durante a intervenção, na
qual estive acordado e a ver as imagens no ecrã, o médico avisou-me que as
cartilagens tinham acabado e que não poderia ter mais impactos. Mas como para
mim era tão inverosímil o ter que deixar a corrida, fiquei na firma esperança
que tudo iria passar e voltaria ao mesmo.
No fundo, qual o problema?
Segundo se viu, esta rotura já teria talvez um par de anos mas sendo interna e
horizontal, não se manifesta em qualquer tipo de dor. Terá sido provocada por
alguma batida forte, talvez nalgum bico de mesa ou similar. Nunca senti
qualquer dor, por isso corri como sempre pois não poderia imaginar o que se passava.
E o que provocou a rotura? Serviu como espécie de lixa nas cartilagens.
Cartilagens que não têm terminais nervosos, daí também não sentir nada. Foi
desgastando, desgastando, desgastando, até que ao dar completamente cabo delas,
surgiu a dor. Por outras palavras, nada poderia ter evitado pois nada sentia de
errado.
Passados dois meses após a
cirurgia, fui infiltrado e sempre me agarrei à firme esperança que esta acção resolvesse
tudo e recomeçasse a correr. Não queria acreditar no desfecho! (abro aqui um
parêntesis para explicar que a intervenção poderia ter sido efectuada um mês
após a cirurgia mas a operação foi realizada no último dia possível antes de
entrarmos no primeiro e completo confinamento, onde praticamente tudo fechou e
só foi possível no mês seguinte).
Por mais avisos que o médico
fizesse para esquecer a corrida e eu recusar aceitar, dois dias após a
infiltração, e com o resultado da mesma, caí em mim. Não conseguia mais correr!
Não havia mais a mínima hipótese, tudo por culpa do impacto. Não consigo ter
qualquer impacto com esta perna.
Foi dura, muito dura esta
constatação! Quem conhece-me sabe a dor que foi o ter que abandonar algo que
tanto amava! E a 27 de Maio de 2020 escrevi no blogue o artigo que mais me
doeu, o anúncio do abandono forçado.
Entrei num necessário luto mas
rapidamente percebi ser obrigatório arranjar alternativas. Parar é que não! Mas
sem possibilidade de impactos, o leque fica muito reduzido.
Lembrei-me de caminhadas e
inquiri o médico. Respondeu que o melhor para o joelho é não parar, mexer o
máximo que se puder e caminhadas eram uma boa opção, desde que cumprisse três
regras: 1ª Calçado com o melhor amortecimento 2ª Usar uma joelheira própria
para estes casos 3ª Não andar em pisos irregulares.
Como os sapatos de corrida tinham
o melhor amortecimento, apenas faltava a dita joelheira que logo adquiri. E a
31 de Maio, apenas 4 dias após o doloroso luto, comecei a caminhar. Sem olhar
para trás.
É muito curioso como mudamos
consoante as circunstâncias. Bastas vezes ouvia “um dia que não possa correr,
caminho” e pensava que para mim isso não fazia sentido. Correr era tudo,
caminhar não. Mas isto era a pensar de barriga cheia. Quando me apanhei sem
poder correr e apenas a restar-me a caminhada, passei a encará-la de forma
diametralmente oposta.
E comecei então a dedicar-me à
caminhada com o mesmo empenho que à corrida. Sem faltar e a colocar objectivos
e planos. E se de início estava muito perro, fui-me soltando e a melhorar cada
vez mais a distância e a velocidade, alcançando ritmos que não imaginava ser
possível, como fazer um quilómetro a caminhar em 7.27 ou dez à média de 7.57,
ou aguentar quase 4 horas e meia a uma média de 8.36
Como é evidente, cedo apareceu
um objectivo maior. A Maratona sempre foi uma paixão muito especial, aquela a
que dedicava tudo. Impossibilitado de tornar a entrar nessa prova tão marcante
e que proporciona sensações únicas, logo idealizei fazer os 42.195 a caminhar,
o que sucedeu no início do ano, com a surpreendente marca de 6.27.55 E em
Outubro repetirei a dose.
Para quem corre, estes
objectivos e esta dedicação a simples caminhadas, podem parecer filhos dum deus
menor, mas para mim é tudo pois é o que posso praticar. O que não posso de modo
algum fazer é olhar para trás e ver tudo o que perdi com este problema. Existem
apenas duas hipóteses, ou passar a vida a lamentar o que deixei de poder fazer
ou agarrar-me ao que está ao meu alcance.
Assim, continuo a ser e fazer
o mesmo, com a diferença de não correr mas caminhar, além de não entrar em
provas.
O estar sempre a desafiar-me
para ir mais além no que posso fazer? Deixem-me ser feliz assim!
E exorto a todos que deixaram
de poder fazer fosse o que fosse, a tentar sempre mitigar essa ausência com
algo a que se possam agarrar. A vida é muito curta para a desperdiçarmos com
lamentos e pena de nós próprios. Temos em nós a força de virar a bússola a qualquer
momento. Haja vontade e capacidade de mudança!